Alegre: “Presidente é também responsável pela crise”
"No dia em que nasci houve um tremor de terra. Costumo dizer que só a minha mãe o sentiu". O humor acompanha o gesto que conduz até
ao quarto onde tudo aconteceu. Foi há 74 anos. Hoje, é no mesmo número 63 da rua com nome de navegador, que, homem feito, Manuel Alegre abre as portas ao CM da casa onde se
refugiou antes de entrar na corrida para as presidenciais.
Por:Janete Frazão
"É a casa mais antiga de Águeda. Nasci aqui e passei aqui a infância", revela o candidato a Belém, rodeado de quadros, fotografias,
objectos e memórias sem fim, que escrevem as páginas da vida dos Alegre. Não é por acaso que o local, que hoje apenas serve de palco às festas de família, foi escolhido para
encontrar fôlego para o combate a travar nos próximos tempos: conquistar Belém a Cavaco Silva. "É para vencer", diz Alegre, confiante que da campanha, cuja rentrée hoje se
assinala, no Centro Cultural de Belém, resultará uma segunda volta.
O que o afasta do actual Chefe de Estado guarda na ponta da língua. "Cavaco Silva tem uma visão muito conservadora nas questões
económicas. E nunca concordei com a cooperação estratégica", atira o candidato, que logo acusa: "O Presidente é também responsável pela crise". A sede de vitória, porém, não o
cega. E há qualidades a apontar ao adversário: "É pessoa íntegra e, de acordo com as suas convicções, tem procurado servir o País".
"ESTÃO AQUI AS MINHAS RAÍZES"
Manuel Alegre tem um sentimento especial pela casa de Águeda. "Não venho aqui tanto quanto gostaria, mas é impensável desfazer-me
dela", adianta. "Estão aqui as minhas raízes", acrescenta.
Na sala de estar, um dos seus espaços de eleição, Alegre contempla a lareira ladeada de azulejos, onde gosta de ficar a ver a lenha
a arder. "É um momento muito ligado à minha infância. É bom estar aqui". Nos opostos dessa parede, estão pendurados dois retratos. "De um lado, o meu avô republicano, do outro, o
meu avô monárquico", atira, deixando soltar uma gargalhada. "Aqui há de tudo, de tudo", repetiu.
"NOU SOU POPULISTA, NÃO VOU TER COM AS PESSOAS"
A casa de Águeda, remodelada no início do século XX pelo arquitecto Raul Lino, transpira história para além das quatro paredes. Lá
fora, um espaço privilegiado de contacto com a natureza leva Manuel Alegre a viajar no tempo.
O jardim, que hoje anima as tardes quentes dos dois netos do candidato presidencial, que ali mergulham numa piscina insuflável, já
foi um campo de futebol improvisado. O travo suave a café que perfuma o ar ajuda a despertar a memória.
"Fiz aqui bons amigos", começa por dizer o histórico socialista. "Jogávamos à bola, ao pião, coisas que já desapareceram". As
lembranças prosseguem. "Quando podia trazia sempre para casa os mais humildes. Era dos poucos que tinha sapatos e não percebia porque os outros não tinham, fazia--me muita
impressão".
A casa que viu Alegre nascer é sinónimo de "festa, magia", mas trouxe também a descoberta da morte. "Houve uma epidemia que matou
famílias inteiras por aqui, foi a primeira vez que vi um enterro, ainda tenho aquela imagem na cabeça", recorda. A morte não assusta o poeta, apenas o que vem a seguir. Pura e
simplesmente porque, acredita, "nada existe".
Mas a vida tem sido "intensa", até "perigosa", admite. "Própria da juventude, aqui, em Coimbra, na guerra e no exílio".
A conversa é simpaticamente interrompida por Mafalda, sua mulher. Traz nas mãos um tabuleiro com café e pastéis de Águeda, que por
instantes apagam os fantasmas do passado e adoçam a conversa.
O amor nasceu em Paris. Os olhares cruzaram-se pela primeira vez há quase 40 anos, numa fila de cinema. "Ela fazia-se notar.
Reparei, gosto do que é bonito", sintetiza Alegre, com muita reserva, e da qual não consegue descolar. Mais desenvolta, Mafalda aceita o desafio de falar do homem por trás do
político. "É um excelente pai de família, companheiro, não muito colaborante do ponto de vista de tarefas do dia-a-dia, mas através da política e dos filhos temos tido uma vida
muito rica, ao nível familiar e intelectual".
Numa caminhada pela rua, Alegre é mais do que o candidato, é o homem da terra, vizinho. "É desta!", diz um popular. Um antigo colega
de escola não quer acreditar no que vê: "Manelinho, meu menino, és mesmo tu". Alegre abraça-o. E aos que lhe atribuem altivez, responde: "Não sou populista, não vou ter com as
pessoas, mas falo com elas. Talvez seja um pouco distraído". Reconhece um tique familiar de olhar para a frente. Até porque, garante, não há motivos para não o fazer.
"PROMULGAR LEI SEM ESTAR DE ACORDO, NÃO"
A Justiça é uma das áreas que actualmente mais preocupa Manuel Alegre. "Acho que a Justiça não vai mesmo nada bem", adiantou o
candidato presidencial, num comentário sobre a crise que se vive no sector.
Na opinião de Alegre, "tem de haver uma reflexão muito séria" sobre esta matéria. Este deverá ser, aliás, um dos pontos de
preocupação em comum com o actual Presidente da República, Cavaco Silva, que recentemente chamou a Belém o procurador-geral da República, Pinto Monteiro, a quem pediu alguns
esclarecimentos.
Ainda no que se refere a temas que estão a dominar o debate político, Alegre acusou o projecto de revisão constitucional do PSD de
"empobrecer a democracia e mutilá-la". E prometeu: "Seja qual for o governo, venha quem vier, eu veto". Numa clara crítica à actuação do actual Chefe de Estado, comentou ainda:
"Promulgar uma lei e depois dizer que não estou de acordo, não. É isso que credibiliza o Presidente da República".