Hommage à deux poètes. Un vivant et, l’autre disparu: Amadeu Baptiste écrit sur José Régio!
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image: casa exposição de José Régio
Hommage à deux poètes. Un vivant et, l’autre disparu:
Amadeu Baptiste écrit sur José Régio
Je sais qu’Amadeu Baptiste ne m’attend jamais où je suis…
Mais je sais aussi qu’il sait, combien j’aime sa poésie.
Et, nous savons tous les deux, que la Poésie est le saignement du
cœur et de l’Âme.
Dans ce Poème, il s’adresse à un autre Poète « José Régio », dont la
Poésie est dans mon cœur.
Poemas de Amadeu Baptista/Poèmes de Amadeu Baptista
PORTALEGRE, CASA DE JOSÉ RÉGIO
dou três passos em direcção
à casa e fico muito perto da sagacidade.
nada do que vejo é verdadeiro.
estas escadas não existem, esta sombra,
a mulher no quadro surpreendentemente
azul, o friso com ramagens e pássaros,
a destruição do silêncio, a névoa.
tudo em volta é, apenas, mediação,
um artifício para a ilusão e o conflito,
a porta entreaberta para lado nenhum
e nenhum sítio, a morte que se aproxima,
com a penumbra branca a desenhar os lábios,
a pálpebra, a palidez. o gesto desenvolve-se, separa. aqui, ali, este homem
é uma representação, um ciclo sob o vento,
a alma arde-lhe nas têmporas, com insistência
arde,
no rumo da razão de empédocles em que se diz
“das coisas mortais não há criação”.
mas há aves no corpo, este corpo
translúcido que sobre a cómoda entretece
um modo reflexivo e imanente, correndo
para sempre com um breve fumo fulvo
ao longe, a arrastar o abismo para a planície imensa, a arder, a arder pelo oposto
e a envolvência,
na crua simetria da escada, a memória
onde a mudança se abre ao inaudito,
a deus, ao demónio, à casa breve e anómala.
tudo foi inevitável aqui, a mão
prendeu o fio narrativo, o verso e o reverso
do destino, o homem no caminho
entre a sala e o quarto, a ver o incêndio
ampliar-se,
a ver a rua retroceder, com um sentido
de brilho e possessão que não é deste mundo.
esta colcha brevíssima, o anjo sobre o leito,
a jarra nacarada sobre o contador castanho,
o veio na madeira, a pequena luz sob o tapete,
a varanda e o diminuto alpendre, a parede
de água em que desliza um possessivo veludo,
o cristo no desvão, com a cabeça
pendente sobre o peito, dão ao olhar a pura brevidade, a pura rendição, enquanto ninguém dorme. maravilhoso e fugaz é o lugar
da sabedoria,
o homem cresce na escuridão, cresce
como uma constelação, um fio de vinagre
na boca, um certo amor perdido, enquanto
a palavra descreve, dispara um perímetro
longínquo
e eu cresço e diminuo, aqui, à porta desta casa,
a pedir um ponto de ruptura em tudo isto,
uma curva na estrada que volte ao corredor onde se inscreve a mancha de humidade
que explica tudo e nada é, ou foi, e pode já
ser tudo.
mais um passo e poderei gritar, mais um passo
e poderei dizer que vim aqui por nada,
estava a esteva no exterior e entrei
para transfigurar o real, este dia de chuva
no espírito, a serrania em volta, a experiência
insaciável do auspício, a casa, a noite,
a casa, sempre,
onde cada derrocada faz prevalecer
o contágio das vozes, a curvatura do arcos,
o telhado, a janela, os múltiplos estuários
em que os clarões se alicerçam, e os poemas,
certas construções a caminho das nuvens.
no livro vi a primeira dúvida, a rasura
crescente, em outra casa. aqui, a sós,
induzo-me a idêntica explicação, a tosse
na garganta, o doloroso carrego, o dedo
de um pronunciamento a alongar-se
sobre as espáduas, a replicar
à saudade uma luz obscura, com negros
contrastantes, como num sonho mau,
tenso, tenaz. anoitece em mim
como pode ter anoitecido na alma
deste homem, talvez o mar tenha este efeito demolidor, o mar ou a sua ausência.
percorro a casa e pronuncio silêncios estreitos, sempre encontro o coração noutro lugar,
em chamas,
o coração que não vai por aí, o chão
de sulcos e rastros, onde o pó intratável
não retrocede nos séculos, há-de conter
esta aparição repentina, este rumor
de estações insuspeitas, queda a queda, grumo
a grumo,
numa cidade tão improvável como um poeta,
sendo nós quem somos, filhos de retratos
insuspeitos em que nem a claridade toca,
nem a claridade consegue dessangrar.
aqui viveu o homem
que todas as ressonâncias confirmam
como um ser desolado, floresce no inverno
este constrangimento, dou um passo, outro,
sigo este percurso de volumetrias áridas
e rápidas ascensões e prometo-me não voltar,
prometo-me ficar nesta casa para sempre,
até que alguém chegue e me desperte. assim,
a têmpera e a sanguínea retomarão o nome
desta ausência, este homem flui
sobre o passado, volta comigo à pedra, à praia,
embora nestes sinais desconhecidos seja rasa
a euforia, a disforia,
cada um dos capítulos desta nave. por isso,
não me creias. já nada há para crer,
tudo é um vazio sem retorno
desde que te deixei ou este homem abandonou
a minha infância, sempre o li com a certeza
de um mistério anterior a nós, o mistério
que, muito provavelmente, nos fez reconhecer
a amplitude da dor, a vida passada
que vivemos sem que sequer o suspeitássemos,
a ave, a ave de sempre,
no meu e no teu sortilégio desabrido.
Rosario Duarte da Costa
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14/03/2012