Carta de Saramago à avó! Lettre de Saramago à sa grand-mère!
Un de mes amis m'a adressé ce document par mail. Il s'agit d'une
lettre de José Saramago, adressée à sa grand mère agée de 90 ans!
C'est très émouvant car, les mots qu'il a dit à sa grand mère
pourraient être peut-être ceux de chacun de nous...
Merci Albano, merci à toi de m'avoir permis de divulguer notre
frère sur ce blog. Une bise.
Rosario Duarte da Costa
30/11/2010
http://catracalivre.uol.com.br
http://singrandohorizontes.file.wordpress.com
SAVANA (Maputo) 13 de Agosto de 2010
Carta de Saramago à avó
”Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais
bela rapariga do teu tempo – e eu acredito. Não sabes ler. Tens as
mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à
cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste
nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se
faria um banquete universal.
Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama
quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de
aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime
de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira – sete vezes
engravidaste, sete vezes deste à luz.
Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de
economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião.
Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário
elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às
catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de
princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha.
Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança,
grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma.
Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro
que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio.
Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada
na torre da igreja. (Contaste-me tu, ou terei sonhado que
o contavas?) Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses.
E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é
como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém. Estou
diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue,
mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o
que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para
ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério
inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança:
quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se
dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão
calosa, passo a minha mão pela tua face enrijada e pelos teus
cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos – e continuo
a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente.
Por que foi então que te roubaram o mundo? Mas disto talvez
entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse
escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu
pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará
sem ti – e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais
importava.
Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas
palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com
esta culpa de que me não acusas – e isso ainda é pior. Mas porquê,
avó, porque te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para
a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por
onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das
árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade
dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca
perdida: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!”.
É isto que eu não entendo – mas a culpa não é tua”.
José Saramago